quinta-feira, 5 de junho de 2014

Epopeia

Super-homens de capa roxa eram mártires naquele mundo de concreto. Homens de aço feitos de borracha que sangravam tinta pelas frestas da alma. Dizem que Jesus Cristo morreu na cruz para transformar os diamantes deles em carvão sem valor, mas esses super-heróis não acreditavam em histórias cristãs. Eles eram pagãos na dança dos reis, sem um divino que os ensinasse a punir. Sua religião era o amor: perdendo amigos simplesmente por existir, fazendo inimigos simplesmente por amar. No gosto amargo da solidão, eles salvavam seu próprio mundo, se pintavam com o pó das estrelas, se vestiam de roupas de um futuro esquecido, e isso lhes bastava para enriquecer seus espíritos de uma glória indecifrável para nós, seres comuns. No entanto, também fomos fabricados para sermos heróis, educados para duvidar daqueles que viviam nas sombras, mas sem saber que quem se escondia nas trevas da ignorância éramos nós, perdidos na petulância de odiar aquilo que não entendíamos. Éramos marionetes do prazer sórdido de sermos a maioria. Ocupados demais em ressaltar a proeminência de nosso egoísmo, territorializamos esse mundo, preferimos designar partes, para que no fim, não sobresse nada para aqueles que não faziam parte do que considerávamos “nosso”. E então banimos aqueles mutantes sem causa, demos a eles apenas os becos de uma sociedade pelega. E assim, todas as vezes que eles ousaram desfilar por aí com sua imponente sua capa roxa, mostrando na dolorosa saga do cotiado suas virtudes sobrenaturais, soubemos quem eram eles, e pois bem, fuzilamos suas lindas faces com olhares encharcados de repulsa e desgosto. E então, ali mesmo matamos suas almas, deixando seus corpos vivos, porém ocos, insanos, apodrecendo no desconsolo do preconceito. Poucos anos se passaram depois disso, aliás o tempo é relativo. Criamos e tangemos epopeias como essa para justificar por que matamos tantos heróis, mas principalmente para justificar por que alimentamos a plebe rude com um banquete dos deuses.